8 de dezembro de 2011

Carta de SP online - 10

Carta de São Paulo Online - N° 10

Editorial

“O gozo feminino no século XXI” evoca o que de nosso tempo manifesta-se em transformações, queda, fracasso. Já há algum tempo os psicanalistas de orientação lacaniana tomaram isso em perspectiva para, partindo das formulações do último ensino de Jacques Lacan, emoldurar uma clínica que esteja à altura daquilo que surge como efeito na cultura e no sujeito do inconsciente. Se o mestre contemporâneo não pode mais agenciar um discurso em uma ordem universal, o que testemunhamos hoje como seres de fala, implica outra ordem que estamos tratando de deslindar. O tema para o próximo Congresso da AMP tem nos convocado a isso.

Nossas Jornadas – que ocorreram nos dias 25 e 26 de novembro último – longe da pretensão de esgotar o tema, coloca-o antes em perspectiva. Ele foi pensado para nos aproximar da questão na medida em que aponta para a intrusão desse elemento ex-sistente à ordem simbólica e que, no entanto a determina: o “gozo” como fazendo limite à palavra e ao sentido é posto em nosso título servindo como porta de entrada a esse debate. O gozo como persistente e insistente representa certo fracasso na ordem imposta pelo sentido. “Fracasso”, uma palavra que o próprio Lacan não hesitou em destacar ao falar do futuro da psicanálise. “Quando a psicanálise houver deposto as armas diante dos impasses crescentes de nossa civilização (mal-estar que Freud pressentia) é que serão retomadas – por quem? – as indicações de meus “Escritos”. É o final de sua conferência na Universidade de Roma em dezembro de 1967, publicada em Outros Escritos,“A psicanálise. Razão de um Fracasso” (pg 341). O “futuro” do qual fala Lacan é agora, 30 anos depois de sua morte e o fracasso constitui a impossibilidade de uma ordem na cultura que seja dominada pelo mestre. Fica então a ideia de um princípio onde não há que nutrir o sintoma de sentido. Desse poder, o analista tem que renunciar para que do impossível do sentido, que faz a miséria do ser, possa fazer surgir e prevalecer uma existência sustentada no Um.

Luiz Fernando Carrijo da Cunha

Cartéis e Intercâmbios

A Diretora de Cartéis, Maria Margareth Ferraz de Oliveira, encaminha um trabalho produzido em Cartel por Maria de Fátima Luzia.

Quando surge a angústia?

Lacan em seu seminário sobre a angústia estabelece que todo investimento especular define-se como um tempo determinante da relação imaginária; no entanto, nem todo investimento libidinal passa necessariamente por essa imagem. Sempre há um resto, e este resto é determinado por uma função sob a forma de uma falta – o falo.

O que o homem vislumbra no lugar do Outro é uma imagem virtual, uma imagem falaciosa. Essa imagem caracteriza-se por uma falta, que polariza o desejo relacionado à “presença de uma ausência”. A presença em questão é o objeto a. Na imagem do sujeito como propriamente imaginário, o falo surge a menos.

No lugar da falta algo pode aparecer: é o “-phi”. Este lugar indica algo de uma reserva libidinal, algo que não se projeta na imagem especular. Qual a relação entre a angústia e a castração?

A função do falo como imaginário é exercida por certa relação do sujeito com o a, numa função mediadora. Essa carência do falo é o esvaecimento da função fálica, o que constitui o princípio da angústia de castração e a notação “-phi” aponta esta carência. “O amor idealista presentifica a mediação do falo como “-phi”. O “-phi” é aquilo que eu desejo, mas o que também só posso ter como “-phi”. Esse menos não é hegeliano, isto é, não é recíproco, ele constitui o Outro como falta, a que só tenho acesso quando o funcionamento do menos me faz desaparecer.”(1)

O que pode vir a assinalar no lugar de “-phi” é a angústia, a angústia de castração em relação com o Outro.

A castração em sua estrutura imaginária está dada no “-phi”, na fratura produzida da aproximação da imagem libidinal com o outro. Essa fratura apresenta variações e anomalias que indicam que ela pode ser utilizada para outra função, dando sentido ao termo “castração”.

“Aquilo de que o neurótico recua não é a castração, é fazer de sua castração o que falta ao Outro”. (2) É fazer com que sua castração garanta a função do Outro, como aquele que possibilita um deslizamento de significantes sem fim. É no lugar da falta que o sujeito é chamado a dar um signo, o de sua própria castração. “Dedicar sua castração à garantia do Outro, é diante disso que o neurótico se detém”. (3)

A angústia estaria ligada a tudo o que pode aparecer no lugar “-phi” e o que asseguraria isso, é o surgimento de um fenômeno, Unheim, o estranho.

Freud designa o Heim como aquilo que afeta as coisas conhecidas e familiares, precisamente pelo estranho que se apresenta no que é familiar. Seria algo em que o sujeito se encontra perdido, desorientado. Essa palavra designa o que seria a casa do homem, sendo a casa o que o homem encontra para além da imagem situado no Outro, lugar que representa a ausência em que estamos: assim o sujeito só tem acesso a seu desejo quando substitui um de seus próprios duplos.

No conto de Hoffman Freud irá apontar a perda dos olhos como a ameaça do homem da areia, que arranca os olhos das crianças que não dormem e os dá de alimento a seus filhos, como um substituto da angústia de castração. O duplo neste conto aparecerá sempre em relação ao olhar, Natanael substituirá o homem de areia por Coppola, um ótico ambulante que lhe venderá um binóculo, provendo-o assim de olhos que lhe permitem “enxergar melhor”. Este binóculo lhe permite entrever a mulher pela qual se apaixona, pela imagem imóvel que observa. Ao se deparar com o corpo dilacerado da boneca que acredita ser sua amada, novamente os olhos aparecem destacados do corpo e são recolhidos ensanguentados pelo construtor da boneca que os entrega a Natanael dizendo-lhe que são os olhos que Coppola tinha lhe roubado. Na cena onde algo da imagem se dilacera desencadeia-se um acesso de loucura, a recordação da morte do pai se mistura com essa nova impressão. “Roda fogo, roda fogo! Lindo, lindo, bonequinha de madeira, gira, gira!”

Os elementos do conto se tornam significantes quando não se rechaça a vinculação entre o temor pelos olhos e a castração. No lugar do homem de areia se coloca o temido pai, a quem se atribui o propósito da castração.

No conto do Homem de Areia o que se apresenta, segundo Freud, é o complexo de castração infantil, é o objeto do desejo que ele constitui, o olho que se destaca, o buraco que se apresenta como vazio. Freud relata que o Heim se apresenta quando se desvanecem os limites entre fantasia e realidade, ou seja, entre o que a imagem oferece e o que dela escapa.

A fantasia do neurótico situa-se no lugar do Outro. Na função da fantasia existe algo da ordem do a que aparece no lugar de “-phi”, o lugar do Heim, lugar do surgimento da angústia. Essa fantasia é o que de melhor se serve o sujeito para se defender da angústia, encobrindo-a. Esse objeto consegue defendê-lo da angústia justamente por ser um a postiço. O uso falacioso do objeto na fantasia é explicado pelo fato do sujeito ser capaz de transportar para o Outro a função do a, a demanda que ele quer que lhe seja feita, só não quer pagar o preço.

A castração se inscreve no limite da regressão da demanda, pois aparece no momento em que o registro da demanda se esgota. A ordem terceira é o que destitui o duplo, quando algo do estranhamento surge e a imagem se rompe de uma ilusão de totalidade, pois a imagem nunca é totalizante, sempre há lacunas. O lugar designado como o da angústia e que é ocupado pelo “-phi” apresenta certo vazio e o que se manifesta neste lugar, desorienta.

“A existência da angústia está ligada a que toda demanda tem sempre algo de enganoso em relação ao lugar do desejo”. (4), e o aparecimento da angústia se dá quando essa falsa demanda tem uma resposta saturadora. Há certo vazio que deve ser preservado na demanda e é de sua saturação que se manifesta a angústia. A demanda surge no lugar do que é escamoteado, a , o objeto.

Maria de Fátima Luzia

Referências Bibliográficas

Freud, S. - Obras Completas - Lo siniestro 1919 Hoffman, E.T.A – Contos Fantásticos - O Homem de Areia

Notas

1. Lacan, J. – Seminário X - A angústia, p. 294.

2. idem, ibidem, p. 56

3. idem, ibidem, p. 56

4. idem, ibidem, p.76

Integrantes do Cartel:

Cássia Maria Rumenos Guardado ( Mais-Um )

Valéria Ferranti

Marilsa Basso

Regina Puglia

Biblioteca



VISITEM NOSSAS MÍDIAS

INTERCÂMBIO ENTRE BIBLIOTECAS

A biblioteca da EBP-SP agradece as publicações recebidas e coloca-as à disposição dos usuários.

  • CliniCAPS – Wellweson Durães de Alkmim

Viganò, Carlo. Novas Conferências. (Alkmim, Wellerson Durães org.) Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2010

  • UNIPAC - Universidade Presidente Antonio Carlos

MENTAL: Revista de Saúde Mental e Subjetividade da UNIPAC - Universidade Presidente Antonio Carlos - v.9, n. 16, junho de 2011. Minas Gerais, Barbacena: UNIPAC, 2003.

  • Instituto de Psicologia da USP

Psicologia USP. Volume 22 número 2. São Paulo: abril/junho, 2011.

  • Conselho Federal de Psicologia

Jacó-Vilela, Ana Maria (Org). Dicionário Histórico de Instituições de Psicologia no Brasil. Rio de Janeiro: Imago; Brasília, CFP, 2011.

  • Escola Brasileira de Psicanálise – Paraná

ALEPH - Revista da Delegação Paraná da Escola Brasileira de Psicanálise. A psicanálise: Sua Ação e sua Eficácia - Nº 02 . Paraná: Seção Paraná da Escola Brasileira de Psicanálise, Agosto de 2011

  • Escola Brasileira de Psicanálise – Rio de Janeiro

ARQUIVOS DE BIBLIOTECA - 5 . Rio de Janeiro: Seção Rio da Escola Brasileira de Psicanálise, junho, 2008.

  • Escola Brasileira de Psicanálise Santa Catarina

ARTEIRA- Revista de Psicanálise – n º 3. Santa Catarina, Florianópolis: Seção Santa Catarina da Escola Brasileira de Psicanálise, outubro, 2010.

ARTEIRA- Revista de Psicanálise – n º 4. Santa Catarina, Florianópolis: Seção Santa Catarina da Escola Brasileira de Psicanálise, outubro, 2011.

A Comissão de Biblioteca da EBP-SP está traduzindo textos do Colofon e à medida que passarem por revisão serão publicados na CSP-ONLINE.

Em seguida, mais uma resenha, trabalho contínuo dos colaboradores da Seção São Paulo da EBP.

Resenha

AS DUAS FORMAS DO PARCEIRO-SINTOMA

Miller começa o capítulo indicando o corpo vivo como referência do gozo, desconexo da articulação significante que lhe é independente, à exceção do escrito, da letra. Coloca de um lado, o imaginário, especular, em que a libido do eu bascula entre a e a’, e, de outro o simbólico, oposto ao imaginário, buscando outra satisfação, que não inclui o corpo – satisfação significante vinda do reconhecimento do sujeito pelo Outro. A partir do conceito de pulsão, o corpo vai se impondo como um lugar de referência da libido distribuída pelas zonas erógenas – partes significantizadas, mortificadas, ligadas à pulsão, e que vincula o sujeito à demanda na articulação da cadeia significante.

A inserção da noção de objeto a por Lacan traz à luz um corpo não mortificado. O autor ressalta que os objetos pulsionais, objetos de gozo, revelam as exceções que demarcam o corpo vivificado onde se situa o gozo. Assim, é contemplado em duas dimensões: corpo mortificado que produz o sujeito barrado ($) e corpo vivificado, o mais-de-gozar (a), ambos se unem exatamente no ponto onde se constitui a fantasia ($◊a). Daí decorre o duplo efeito do significante no corpo – um que mortifica e outro que vivifica. Enfatiza Miller: “se o significante mata o gozo, da mesma forma o produz”.

Lacan, para conceber o corpo vivo, substitui o termo ‘sujeito’ (da ordem da mortificação, da falta-a-ser) pelo termo ‘falasser’ (oposto à falta-a-ser) que conjuga sujeito e corpo – sujeito e substância gozante. A concepção de Outro é revista, levando Miller a introduzir o ‘parceiro-sintoma’ ligado ao falasser falasser ◊ parceiro-∑ (relação sexuada) em lugar da relação do sujeito com o Outro – S ◊ Outro (relação assexuada).

O Outro do parceiro-sintoma é um corpo vivo, não mortificado, sexuado, tal como o falasser. Há uma mudança de perspectiva: a relação falasser ◊ parceiro-sintoma passa pelo gozo do corpo, d’alíngua, do sintoma, o Outro é o sintoma do falasser – seu meio de gozo, ele goza do corpo do Outro. O estatuto do sintoma difere fundamentalmente daquele das identificações imaginárias, ou da fantasia, pois não é possível fazê-lo cair, não é possível atravessá-lo – é o osso de uma análise, com ele há que se conviver – viver com, fazer algo, algo de novo com esse gozo que resta.

Na parceria-sintomática, o gozo é auto e aloerótico – ao mesmo tempo em que é autístico inclui o Outro. A diferença está no gozo: o masculino é determinado pela estrutura significante do Todo X – fálico, limitado, localizado no corpo, inclui o pequeno a; já o gozo feminino é determinado pela estrutura do Não-Todo – é infinito, ilocalizado, fora do corpo, “outrificado”, inclui o grande Outro barrado. A escolha das posições masculina e feminina, que fundam as estruturas significantes, Todo X e Não-Todo, determina a forma de gozo de cada um na parceria. O parceiro-sintoma do homem é o objeto fetiche e o do falasser feminino se dá na forma erotomaníaca.

Miller chama a atenção para a função do objeto para o homem e a função da fala para a mulher assinalando que o homem goza sem amar, enquanto que a mulher, para gozar, precisa da fala e do amor. Em suma, o homem goza para amar, a mulher ama para gozar, ela exige a fórmula: falar-amar-gozar.

Encerra o capítulo falando dos parceiros devastação, como a outra face do amor, e do parceiro contemporâneo, fruto das mudanças socioculturais ocorridas nas últimas duas décadas, que promovem direitos iguais abrangendo a relação entre o homem e a mulher: ambos gozam de direitos iguais. Isso vem culminar no estabelecimento de novos semblantes trazendo novas questões para os dois sexos.

Antônia Claudete Amaral Livramento Prado

Referências Bibliográficas

MILLER, Jacques-Alain. “O osso de uma análise”. Salvador: Biblioteca – Agente - Edição Especial, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, 1998, pp. 91-118.

Publicações do Campo Freudiano



Opção Lacaniana Online - nova série, nº 6.

Acabou de sair: aproveite e visite a revista no site abaixo. http://www.opcaolacaniana.com.br

Caso queira publicar seus trabalhos consulte as “normas de publicação” da revista no site.

Ecos do Mundo



Congresso da AMP

Todos a caminho de Buenos Aires, para o Congresso da AMP em abril de 2012. O Boletim informativo do VIII Congresso da AMP -Hurry Up! / 9 – pode ser visitado no site: www.congresoamp.com

Leia os textos preparatórios, veja as novidades do Campo Freudiano, escolha a hospedagem.

Nossas mídias veiculam as traduções de Lacan Cotidiano. Aqueles que desejarem ler em francês, entrem no site http://www.lacanquotidien.fr/blog/

Terra de Santa Cruz

As Jornadas 2011 – EBP-SP “O gozo feminino no século XXI” foram premiadas com uma produção epistêmica de alta qualidade. Na medida do possível publicaremos os trabalhos discutidos nas Mesas Simultâneas. Desta vez o texto é de Leny Mrech.

Cecília Meireles: a fluidez de um olhar na literatura infanto-juvenil

Leny Magalhães Mrech(1)

É bastante conhecido o enorme interesse de Freud pelas obras de arte e, sobretudo, por obras literárias. Era um leitor ávido de Aristóteles, Sófocles, Goethe, Schiller, Shakespeare, dentre outros. Ele buscava descobrir o outro lado, além da razão, do sonho.

Em O Estranho (1919), Freud indaga quais seriam os processos psíquicos que estariam por trás da inquietante estranheza (unheimlich) que se sente quando se entra em contato com certas obras literárias.

Foi esse estranhamento que senti ao ler Olhinhos de Gato, de Cecília Meireles. Publicada entre 1939 e 1940, apresenta uma narrativa romanceada a respeito da sua infância.

De forma onírica, lida com a perda, a dor, a solidão, a morte e o luto. Trata-se de um livro que traz imagens da infância como um caleidoscópio em constante mutação. E esses elementos revelam uma mulher/menina deixando-se levar pelas mãos do sonho.

E OLHINHOS DE GATO ficava olhando: cobertor vermelho, tão grosso, peludo como o couro de um bicho... Peludo e lustroso. E, de lado a lado, um leão enorme caminhando. (Haveria leões vermelhos? Seria aquele cobertor uma pele de leão?). (Meireles, 1980, p. 2)

Um processo delirante? Onírico? Ela revela o lado mais angustiante e triste da sua vida. Olhinhos de Gato é seu codinome no livro. Uma forma de ela se nomear e às pessoas queridas, tais como a avó, que recebeu o codinome de Dentinho de Arroz. Uma ideia mágica instituída na infância de que o codinome as protegeria de um encontro com a morte. Era uma estratégia que sempre falhava. Cecília passou por várias mortes ao longo da sua vida: a mãe, o pai, o avô, a irmã e o irmão. Todos em tenra idade. A vivência de um luto contínuo que também a acompanhou em sua vida de mulher: seu marido suicidou-se.

Ela tece, no livro, um olhar a respeito da vida e da morte: “E ela via os mortos e os vivos. E os vivos não sabiam. Nem talvez os mortos, também.” (Meireles, 1980, p. 131). Seu olhar lembra o de Lyotard, em um texto escrito por associação livre, em maio de 1968:“O olho não é um órgão dos sentidos, é o órgão de todos os sentidos e o sentido de todos os órgãos.” (1975, p. 35)

Cecília Meireles é só olhos: um olhar em esquize, como revela Lacan, no Seminário XI – Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise: “O olho e o olhar, esta é para nós a esquize, na qual se manifesta a pulsão no nível do campo escópico.” (2008, p. 76).

A autora é tomada pela pulsão escópica: um olhar do qual, de tão dolorido, ela precisa se cegar para poder ver melhor.

Dessa cadeira, e debruçada para o mundo, foi que ela realizou o seu imenso descobrimento. Bastava olhar para o céu de noite, e acontecer cair-lhe na vista a “gota-serena”. Bastava passar pelos olhos a mão suja do pólen das mariposas... Passou a ser cega e a viver no mundo dos cegos – e com a noite por todos os lados e apenas a própria memória sustentando a noção de sua presença: como uma pessoa perdida na noite numa casa escura e fechada. Como um enterrado vivo com as mãos pelas raízes, por baixo do chão. (Meireles, 1980, p. 129)

Olhinhos de Gato, vendo o mundo da vida e da morte: uma tentativa de colocar em palavras o inominável.

Maria Maruca insistia em perguntar-lhe: E de que mais ainda te lembras? Mas pensavam que era invenção quando ela se punha a explicar com desespero que, antes de ser assim como era, tinha sido uma bola vermelha que girava, girava, girava [...] (Meireles, 1980, p. 55)

O adulto queria a lógica. Ela só tinha a oferecer o que via. Uma tentativa de tecer um semblante, aos poucos, de Cecília/Olhinhos de Gato.

Um olhar à deriva pelas coisas e pessoas. Com um vazio e um desejo de trazer de volta aqueles que se foram. Um desejo de mãe: “E aquela mesma voz ali do quarto, dizendo às vezes, a olhar para as nuvens: “Minha querida filha! Com duas grossas lágrimas, descendo. (Meireles, 1980, p. 81).

Em um tempo quando a infância virou um estereótipo, o livro traz outro olhar a respeito da infância de uma menina. A morte e o gozo interagindo constantemente ao constituir a autora como sujeito e revelando o real em sua forma mais dura. O olhar enigmático além de todas as mortes.

De todas as significações. Uma vida que a tornou uma menina/mulher.

(1) Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e Associação Mundial de Psicanálise. Livre Docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Coordenadora do NUPPE (Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação) da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Referências Bibliográficas

Freud, Sigmund. O Estranho. In:Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

Lacan, Jacques. O Seminário XI – Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

Lyotard, Jean François. A partir de Freud e Lacan. Madrid: Fundamentos, 1975.

Meireles, Cecília. Olhinhos de Gato. São Paulo: Moderna, 1980.

Editora: Bernadette Pitteri Revisora: Daniela Affonso Montagem: Maria Marta Rodrigues Ferreira

Diretoria da EBP-SP

Diretor Geral:

Luiz Fernando Carrijo da Cunha
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