25 de janeiro de 2012

LACAN COTIDIANO Nº 107 - PORTUGU ÊS

Segunda-feira, 5 de dezembro de 2O11 00h00 [GMT+ 1]

NÚMERO 107

Eu não faltaria a um Seminário por nada nesse mundo— Philippe Sollers

Nós venceremos porque não temos outra escolhaAgnès Aflalo

http://www.lacanquotidien.fr/blog/

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1° Movimento (Allegro) do Concerto Italiano de J.S. Bach BWV971 - Keith Jarrett - Clique aqui: http://www.youtube.com/watch?v=i7MqUBLlTEE&feature=endscreen&NR=1

CRÔNICA

Mancamento radiale de Antonio Di Ciaccia

O objeto fetiche europeu

ECOS...

Do encontro com Blandine Kriegel

O momento republicano por Pauline Prost

Lilia Mahjoub, o texto de sua intervenção

▪ CRÔNICA▪

«Mancamento radiale» de Antonio Di Ciaccia

O objeto fetiche europeu

Tutti i nodi tornano al pettine”, diz um provérbio italiano, cujo equivalente em francês seria: “no final tudo se paga”. O capitalismo não parece se comportar mal, mas os velhos ocidentais parecem estar ocidentados como nunca pelo capitalismo; o que, finalmente, dá razão a Marx que via os humanos reduzidos a uma pura variável do capital.

Giorgio Ruffolo, economista e antigo ministro, faz uma leitura das origens e domínios desta situação no La Repubblica [jornal italiano]. Primeiro nossos ancestrais, os Romanos, baseavam sua economia no roubo: de terras, de mulheres, de escravos, de ouro, e assim vai. Na Idade Média a economia baseava-se na corte: a prosperidade dos senhores, pars dominica, alimentava-se da exploração dos camponeses, pars massaricia. Em seguida, chegaram a democracia e o capitalismo. Segundo nosso Autor, o capitalismo [deixemos a democracia por enquanto] tende a concretizar uma crença geral na economia e, apesar das injustiças, ele consegue isso; donde, em sua opinião, sua “indiscutível superioridade sobre todo outro regime”. No entanto, algo se deteriorou devido à transferência da acumulação das coisas em direção à acumulação dos títulos que representam as coisas (as finanças). Doravante, o capitalismo não traduz mais o lucro na produção de bens reais e dedica-se a uma concentração da riqueza sob a forma líquida (moedas e títulos) nas mãos de alguns plutocratas (privados, mas, sobretudo, instituições), o que tem como consequência o fato de que o valor líquido mundial pode representar doze vezes aquele do produto real mundial. Aqui se encontra a razão do endividamento das nações ricas, a economia não se baseia na exploração do momento presente, mas nas rendas futuras.

Algumas observações. De fato, o capitalismo tende à crença na riqueza. É verdade, também, que os dois parceiros do capitalismo, o capitalista e o proletário, estão assimilados: se eles renunciarem ao gozo, ganharão um excesso. Somente para o capitalista, trata-se da mais-valia que lhe volta após ter perdido o gozo do uso da mercadoria produzida pelo trabalhador, o qual, após ter perdido sua liberdade, tem também seu ganho. Ao invés de viver, ele sobrevive. Lacan, com estas pequenas criticas que fazem a nós nosso gozo, em O Avesso da Psicanálise, expande a questão àqueles povos que querem participar da riqueza das nações desenvolvidas: neste processo, o que eles perderão é o saber. Saber que lhes dava seu estatuto e que o rico ou as nações ricas embolsavam por debaixo do mercado, sem pagar.

Marx, em O Capital, nos ensina que a mercadoria, que não serve somente para seu uso e nem para seu valor, recebe sua áurea “mística” a partir da maneira que reflete – “como em um espelho”, ele diz – a forma da relação social entre os humanos. A mercadoria, então, que era feita para a troca, e o dinheiro que era para circular fixando-se, transformam-se em “objetos fetiches” e paralelamente os metalúrgicos vestem-se em capitalistas.

Voltemos à Europa, com seu cômico e seu trágico, melodramaticamente ligados. Não somente os Países europeus endividados vêem seus títulos desabarem como um castelo de cartas, mas os mais virtuosos não querem se tornar os cofres-fortes dos eurobonds [N.T: do inglês euro-obligation; em português euro-obrigação], que ocultam os títulos (sem valor) dos outros. Os metalúrgicos alemães não estão de forma alguma prontos a se deixar espoliar pelos mediterrâneos adeptos do dolce far niente, os quais por sua vez, criticam os nórdicos pela sua ligação a uma moeda forte que denominam doravante de neuro (euro do norte).

A dicotomia, dessa forma, foi reproduzida no interior da Europa e pouco importa se o Harpagon alemão permanece enganchado aos seus Bund («Se eu o chamo de roubo? Um tesouro como aquele?”) e o napolitano generalizado ao seu prazer (“[...] mas isto não será perdê-lo e sim deixá-lo”), já que nos dois casos é o TOC. O que se mantém é o capitalismo como uma coisa séria, “algo loucamente astucioso”, para dizer juntamente com Lacan, “mas consagrado à morte”. Justamente porque “isto funciona muito rápido, isto se consome (consomme), isto se consome (consomme) tão bem que isto se destrói (consume)”. E nós juntamente.

________________________________________________________ Ecf-messager nos informa da Noite da Biblioteca O simbólico no século XXI O signifiante vivo: «Ler Lacan na China» quarta-feira, 7 de dezembro de 2011 às 21h15.

Nathalie Charraud apresentará um exemplo chinês de não-todo, tirado de um comentário de A arte da guerra de Sun-tsu.

Alain Cochard propõe mostrar que as referências de Lacan à cultura chinesa e, em particular, a Mencius respondem a problemas clínicos.

Jean-Louis Gault, cronista de Lacan Cotidiano (Crônica chinesa) atualizará as características da escrita chinesa, o que a distingue da escrita alfabética e porque ela pode interessar Lacan.

Catherine Orsot-Cochard tratará dos «poderes da [escrita] cursiva», em referência a uma frase de Lacan em «Lituraterre», Seminário 18, p. 120. ____________________________________

ECOS...

Da Conversação com Blandine Kriegel:

- O momento republicano por Pauline Prost

- Lilia Mahjoub nos dá o prazer de compartilhar com os leitores de Lacan Cotidiano o texto de sua intervenção.

O momento republicano por Pauline Prost

Nesse local memorável que é, para todos os lacanianos, a sala Dussane da Escola Normal Superior, nos foi apresentado, neste sábado, um personagem do qual, o trabalho de Blandine Kriegel (1), nos revelou que assombra a Europa, não certamente como um espectro, mas portador, entretanto, de uma “convidativa estranheza”: trata-se de Guillaume d’Orange, fundador, sob a insígnia das Províncias Unidas, do primeiro Estado republicano. Figura epônima do “Príncipe moderno”, ele representa, anuncia Jacques-Alain Miller em sua apresentação, “a báscula decisiva de nosso mundo e uma abertura para o futuro, ou mesmo um matema da modernidade”.

O comentário de Blandine Kriegel foi inserido em um debate cativante, no qual Jacques-Alain Miller, Bernard-Henri Lévy, Lilia Mahjoub, Marie-Hélène Brousse, Phillipe La Sagna e Eric Laurent, assim como Alexender Adler e Alexis Lacroix colocaram suas contribuições.

O milagre desse “momento holandês” se compara à série de oximoros que as trocas fizeram surgir: o oximoro não é apenas uma figura de retórica, reunindo os contrários, ele porta também o desafio sobre a contradição, impede a dialética, despreza as mediações, opõe-se às astúcias da razão. Ele engendra quimeras onde a primeira é a noção de Estado Republicano: conjunção improvável, impossível até então, entre a tradição republicana das cidades, antigas ou medievais, e o Estado Imperial, desenhando assim, à imagem de Atenas contra os Persas ou a Macedônia, as províncias da Holanda contra Phillipe Deux.

Encarnar essa quimera, inscrevê-la na história, foi “a coragem e a loucura” de um soberano inspirado, mas também fruto de uma audácia do pensamento, daquele dos juristas, tal como Jean Bodin, que teorizaram o esforço de colocar o poder estatal sob o jugo da lei republicana, de converter a “potestas” em “auctoritas”, de inventar uma nova soberania onde o Príncipe, arrancado de seu destino maquiavélico, torna-se detentor de uma violência “legitima”, visto que ele mesmo está submetido à lei. Ao entusiasmo de Hegel, que, em Napoleão, via “passar o Espírito do mundo (quer dizer, o Estado de direito) de seu cavalo”, B. Krigel, também entusiasta, objeta que ele apareceu bem mais cedo, mas sem cavalo.

O paradoxo de um Poder republicano (a força da lei) faz surgir, no coração dessa nova língua política forjada pelos juristas e pensadores tal como Rousseau ou Spinoza, contra o direito Romano, um segundo oximoro, uma nova quimera: a noção de Direito Natural, que tem sentido somente se essa “natureza” é invocada em termos religiosos, opondo a mensagem bíblica à arbitrariedade dos tiranos. Inscrever no Direito as normas e valores sociais divulgados pela religião, e, assim, laicizados, tal é a proeza do espinozismo, do qual a Revolução Francesa e as ações contemporâneas em favor dos Direitos Humanos são herdeiros.

Enfim, terceiro oximoro, a invenção paradoxal de uma “república democrática”: não é tão fácil assim, por suposto, conciliar esses dois conceitos que são, no entanto, frequentemente confundidos. A República garante o Estado de Direito, pela sua Constituição, a democracia é o governo do povo. Mas o povo pode escolher um tirano, inversamente, a República é infiltrada pela aristocracia dos legisladores, de todos os corpos burocráticos que fazem aplicar as leis. O apelo a uma República mais democrática ressoou nas interrogações sobre a Europa, visto que se o sucesso de Guillaume foi também aquele dos pensadores e das alianças europeias, nos permite talvez conceber uma República Europeia, que a tensão entre o Estado, as fronteiras nacionais e a vontade dos povos, deixam em um estado atual de “objeto político não identificado» (B.H.L.).

Príncipe moderno, Espírito do mundo sem cavalo, capitão taciturno, jovem valentão e velho melancólico, tal é Guillaume através de seus heterônimos. Paremos ao mais elogioso: “Moisés flamengo”, e, visto que o debate nos permitiu compartilhar nossas línguas, vamos ao encontro de Moisés de Freud, em sua estranha duplicidade. Moisés, esse distribuidor dos comandos que regem, desde sempre, as sociedades humanas, mas também instrumento de um Deus cruel, obscuro e belicoso. Podemos ver aí a alegoria de todos os nossos oximoros: eles designam, na língua política, o conflito da força e do Direito. Na língua lacaniana, a impossível conjunção do simbólico e do real: é preciso aqui uma mediação imaginária, da qual esta conversação esboçou três modalidades (mas há outras?): a nação, a religião, a identificação a um significante mestre, o da exceção. Estas três instâncias são portadoras do ideal, magnetizam o desejo, mas conduzem, sempre, à guerra. O “momento holandês”, conseguindo com êxito seu enodamento, conjurou os demônios, oferecendo à história da Europa uma direção inesperada.

(1) Blandine Kriegel, La République et le Prince moderne, P.U.F., 2011.

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Aqui vai o texto da intervenção que eu fiz no último sábado na ENS e que comporta as perguntas que enderecei à Blandine Kriegel, após leitura de seu livro apaixonante sobre “A República e o Príncipe Moderno”:

Se, com Guillaume d’Orange, temos um modelo de república moderna que rompe com a ficção racionalista do modelo do “Príncipe” de Machiavel, e que, portanto, não é apenas a simples evolução das repúblicas de cidades, mas uma ruptura epistemológica na continuidade da experiência humana no plano político, podemos então dizer que esse “momento Guillaume d’Orange” que se tornou conceito, assim como você o demonstra de forma iluminada em seu livro, é aplicável, hoje em dia, à criação de uma república federal europeia?

Se sim, como?

Assim, este modelo de república moderna, que inclui o maior número de homens (e de mulheres) – no sentido que Bodin anunciava “[...] jamais se deve ter medo que haja sujeitos em excesso, excesso de cidadãos, visto que não há maior riqueza nem força que homens [...]” (1) representados pelos Estados-Gerais, claro, assim como um Príncipe, esse modelo com esses dois componentes é suficiente para uma tal criação?

O “Príncipe”, aquele que dá nascimento ao conceito, estava animado por um “fervor” singular, eu diria mesmo, no sentido de Lacan, por um desejo.

Seria preciso esperar que um homem (ou uma mulher) equivalente, quer dizer providencial, surja, para que um projeto dessa ordem se concretize?

Um José Manuel Durão Barroso [atual presidente da Comissão Europeia] não é certamente um Guillaume d’Orange. E nós não saberíamos “fabricar” um “Príncipe moderno” da têmpera e da estatura deste último.

Nas revoluções ditas Primaveras Árabes, não é o desejo de um homem que produziu a insurreição de todo um povo, nem um pobre homem que fez o sacrifício de sua vida. Estamos longe do Eros de Guillaume. Até esta data, naqueles países, para criar uma constituição, é a fé - a qual se exprime através dos sucessos dos partidos islamitas – que vem no lugar desse desejo. Em outras palavras, é aqui um ideal religioso, um S1, um significante mestre “Islã”, que agrupa.

Lá, onde Guillaume d’Orange, dominava e vencia as separações, os conflitos, os massacres entre católicos e protestantes, nós vemos que é a questão da religião que se impõe e que corre forte risco de se infiltrar na organização política dos países envolvidos.

Bodin, do qual você ressalta a solução republicana, de um lado escrevia que as Repúblicas “não tem apoio nem fundamento mais seguro que a fé” (2) e de outro, em relação à herança, que a igualdade entre homens e mulheres não era recomendada. Eu o cito: "[...] é certo que se as meninas forem igualadas aos meninos no direito sucessório, os lares serão em breve desmembrados, porque há comumente mais meninas que meninos, seja nas Repúblicas em geral, seja nas famílias em particular» (3).

Você conhece a consequência, ele toma um exemplo: Roma, onde se fez passar uma lei pela força para que as mulheres recebam apenas um quarto dos bens em relação aos homens.

“Desde que a lei foi anulada, segue ele, e onde se encontravam mulheres que levavam duas ricas sucessões penduradas nas duas orelhas, como diz Sêneca,[...], o Império Romano declinou em direção ao pior, até tudo ter sido arruinado” (4).

As coisas certamente mudaram desde então, no entanto, ainda permanecem, na França, desigualdades entre os homens e as mulheres. Eu não as enumerarei. Mas essas desigualdades no plano da herança, do casamento etc., estão presentes nos países que se referem à lei do alcorão e que corre o risco de ser reinserido na escrita da Constituição que tais países devem fazer, por exemplo, na Tunísia.

Você pensa que uma Europa federativa, feita sob o modelo que você propôs a partir do “momento Guillaume d’Orange”, dominaria a questão religiosa, assim como as desigualdades que frequentemente estão ligadas a ela?

Jacques Lacan não era muito otimista neste ponto, como podemos constatar no seu texto “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, quando ele escreve: “Nosso futuro de mercados comuns encontrará sua balança em uma extensão cada vez mais dura dos processos de segregação”(5).

Vemos, assim, o que se passa no nosso país quando um Guéant, Ministro, mas também conselheiro, para não dizer eminência parda de Sarkozy, retoma por conta própria as teses do Fundo Nacional sobre a imigração. Visando 2012? Somente?

Como você havia sublinhado, Guillaume d’Orange estava bem acompanhado; ele tinha conselheiros brilhantes. Guéant não é de forma alguma Hubert Languet tampouco um Philippe Duplessis-Mornay. Por outro lado, o que aconselha a Holanda? Rosanvallon, com sua Sociedade dos iguais? Eu não acredito que é isto que poderia engendrar uma “insurreição do pensamento” de acordo com sua bela fórmula.

Tudo isso não promove em nada o entusiasmo que permitiria pensar que algo pudesse ir no sentido do que você desenvolve.

Não seria apenas um ideal? Um horizonte? Seria necessário esperar um tanto ou mesmo pouco, eu retomo, para que um desejo aí se misture. E nenhuma vontade, a meu ver, saberia substituir este último. O que você pensa disso?

Eu acrescentarei, para finalizar, que ler você é um verdadeiro prazer e que o seu livro abre todo um campo de reflexões, ao qual, penso, nós daremos, na sequência, todo seu desenvolvimento.

Lilia Mahjoub.

Notas:

(1) Bodin J., Les Six livres de la République, livre V, Chap. II, Librairie Générale française, Le livre de Poche, LP 17, n°4619, Classiques de la Philosophie, 1993,p. 250.

(2) Ibid. p. 248.

(3) Ibid. p. 251.

(4) Ibid. p. 251.

(5) Lacan J., « Proposition du 9 octobre 1967 sur le psychanalyste de l’École », Autres Écrits, Éditions du Seuil, Paris, avril 2001, p. 257.

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UNIVERSIDADE POPULAR JACQUES LACAN

2012-2013

SEMINÁRIO DE ESTUDOS E DE PESQUISA

A guerra, lado obscuro da civilização

Fatos, ficções, modos de gozo

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Por uma teoria lacaniana da guerra

Todas as modalidades para participar desse seminário que acontecerá de 15 em 15 dias na terça-feira das 21 às 23h.

Lacan Cotidiano

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